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24 de agosto de 2011

Sarajevo Ljubavi moje (Sarajevo meu amor) - Segunda parte

Após o repouso, saímos da casa para jantar. Depois de ter-me deparado com aquela situação a minha vontade de sair da casa era pouca ou nenhuma, mas acabei por ir porque a fome já apertava. Ao sairmos de casa coincidiu com a hora do pôr-do-sol, e apesar da paisagem de inúmeros cemitérios espalhados pela cidade optei por tentar ignorar essa visão e concentrar-me unicamente nos edifícios que se espraiavam pelo vale.

Sabia pelo que tinha lido que Sarajevo era antes da guerra uma das cidades mais cosmopolitas da ex-Jugoslávia, sendo famosa pela sua tolerância religiosa e cultura, e também por ter recebido os Jogos Olímpicos de Inverno de 1984, e tentei ver o que restava dessa cidade.
 Apesar de ainda existirem alguns vestígios de guerra e casas destruídas, a cidade ainda tinha vestígios da sua anterior glória e prestígio, e, ao contrário do que tinha visto durante a tarde, ao por-do-sol não conseguia deixar de achar como era belo todo o cenário que se deparava perante os meus olhos, para meu próprio espanto.



A nossa busca de um local para jantar levou-nos até um pequeno restaurante com um ambiente familiar e despretendioso, que era exactamente aquilo que procurávamos. Após saborearmos um cevapcici e uma baklava, decidimos percorrer as ruas principais da cidade.

O famoso Cevapcici
Para meu espanto, encontrámos as ruas cheias de movimento e cafés, bares e discotecas abertos, cheias de pessoas a confraternizarem, e de jovens adolescentes desejosos de viverem a vida demasiado depressa. Nesse momento dei por mim a pensar nas imagens de pessoas a fugir dos tiros nessas mesmas ruas, apenas alguns anos atrás. Como era possível aquele milagre suceder? 



Uma das famosas rosas de Sarajevo
Tinham-me contado histórias acerca do quotidiano durante esses anos, de pessoas que pelo simples gesto de procurar algo que comer, lenha para se aquecer ou água para beber corriam o risco de acabarem mortas. Contaram-me histórias de pessoas que apenas pelo ruído dos obuses de artilharia a cair sabia que tipo de projéctil era, em que local iria cair e qual o tempo que tinham para fugir de uma morte quase certa. Hoje em dia ainda se pode ver marcas desses bombardeamentos nas ruas da cidade. Essas marcas foram cobertas com cera de velas, sendo conhecidas como as rosas de Sarajevo.

Apenas alguns anos atrás este era o quotidiano daquela mesma cidade que agora via perante os meus olhos vibrante e cheia de vida, a mesma cidade que tinha achado deprimente, angustiante e triste aparecia agora perante os meus olhos transfigurada para algo muito melhor.
Como era possível naquela terra esquecida por Deus as pessoas terem reencontrado a vontade de viver e fazerem de conta que nada se tinha passado naquele local?

Passados minutos deparei-me com um vulto familiar. Era o mesmo homem que algumas horas antes eu tinha visto completamente destroçado por não ter conseguido alugar a casa. Estava de novo na avenida principal, em busca de pessoas de visita à cidade à procura de um local acessível para ficar.

A verdade é que não adianta lamentarmo-nos e ficarmos de braços cruzados e sem esperança à espera que alguém nos salve o dia e a vida. Apenas aqueles que caem e aprendem a levantar-se e nunca perdem a esperança, por muito desesperada que a situação seja, poderão algum dia voltar a viver dias felizes.
- Pois é Hugo, por muito que nos lamentemos a verdade é que a vida continua, e temos de nos agarrar a ela para que não nos passe à frente dos olhos, pensei para comigo.



Uma das entradas do túnel
Lembro-me de ler algo acerca da história de Sarajevo e dos dias do cerco à cidade. Na altura a cidade estava completamente cercada pelo exército dos Bósnios-Sérvios, com excepção da parte da cidade que era ocupada pelo aeroporto, que era controlado pela ONU. Como os Bósnios não podiam ter acesso a esta parte da cidade para poder fazer passar mantimentos e outros bens de primeira necessidade, decidiram construir um túnel que passasse por baixo do aeroporto e ligasse a cidade à área sob controlo dos bósnios.

Até aqui nada de extraordinário, no entanto a verdade é que os construtores do túnel não dispunham de técnicos especializados, materiais ou mesmo instrumentos de precisão que lhes permitisse construir o túnel para que os dois lados coincidissem, tendo sido ele todo feito a olho, e sob condições extremamente difíceis. Ainda hoje uma das casas bombardeadas nas quais termina um dos lados do túnel serve de testemunho da extraordinária proeza destes homens, que numa situação de quase desespero e sujeitos a serem sepultados vivos por uma das bombas que diariamente caíam naquela casa usaram o engenho para encontrar um meio de aliviar o fardo dos cidadãos sitiados.
Com estes pensamentos voltámos de novo à casa onde pernoitámos naquela noite, e ao chegar ao local não quis entrar logo. Decidi ficar mais um pouco cá fora a apreciar as luzes da cidade naquela noite de céu estrelado. Ao ver aquela cidade vibrante e viva carregada de cicatrizes não pude deixar de pensar em como era bela e única. Sarajevo é de facto uma cidade muito especial, que nos faz passar por um misto de emoções fortes e sentimentos, e no fim de tudo nos renova a esperança e aquece-nos o coração…Pelo menos a mim fez-me sentir dessa maneira.

De manhã caminhámos novamente pela cidade antes de a abandonarmos em direcção ao nosso destino. Ao passarmos pelo Praça dos pombos e pela fonte que supostamente faz regressar quem beber a sua água, decidi beber essa água três vezes, para ter a certeza que um dia voltaria.
A praça dos pombos e a fonte
Passaram seis anos desde esse dia, no entanto o desejo de regressar continua vivo. Quando regressar, irei passear pelas ruas a cantarolar a música dos anos 60 conhecida por todos os Bósnios e pela grande maioria dos que visitaram a cidade, que se chama Sarajevo Ljubavi moje (Sarajevo meu amor)



Até um dia...

Sarajevo Lujbavi moje (Sarajevo meu amor) - Primeira parte

Tenho o hábito de todos os dias ler as notícias e ver os cabeçalhos dos jornais para estar a par do que se vai passando no mundo.
Quando abro as notícias sobre o nosso país, e um pouco à imagem do mundo ultimamente, normalmente são más notícias. Quando tenho tempo costumo ler os comentários às notícias, e o que vejo e leio são lamentos e mais lamentos.

Costuma-se dizer que os lamentos, a par com o sentimento de saudade, o futebol e o fado fazem parte do ADN de todos os Portugueses. Também eu por várias vezes caio no erro de me lamentar acerca do estado do nosso país e mesmo da minha vida, mas tal como todos os Portugueses devemos estar mais preocupados em viver e lutar para melhorar a vida do que em lamentarmo-nos, porque na verdade cruzarmos os braços e lamentarmo-nos não adianta de nada.

Quando me lamento arrependo-me logo a seguir devido a uma das mais extraordinárias lições de vida que recebi, e que por vezes infelizmente me esqueço.

Em 2005, durante uma viagem pela ex-Jugoslávia visitei a cidade de Sarajevo, capital da Bósnia Herzegovina. Antes de visitar a cidade apenas recordava as imagens de guerra que inundaram os noticiários de todo o mundo durante os três anos de cerco à cidade. Recordava nomes como a tristemente célebre avenida dos snipers, o Hotel Holliday Inn, o edifício bombardeado do jornal Oslobodenje e o mercado da cidade, todos eles infelizmente célebres por maus motivos.
Avenida dos snipers
Antes de entrar na cidade passei por vários locais e em todos eles vi o espelho de um quotidiano de guerra que aquele país atravessou durante os anos conturbados de guerra civil, mas também vi locais de uma beleza natural capaz de nos fazer sentir pequenos, como o vale do Rio Neretva, o mesmo que passa na fantástica ponte de Mostar, o que me levava a perguntar como era possível ter havido uma guerra num local tão belo. Infelizmente essa é uma pergunta que ficou sem resposta.
Avenida principal
Após passar por todos esses locais, finalmente chegamos a Sarajevo, entrando na cidade pela célebre avenida dos snipers, hoje um local repleto de prédios de habitação enormes com marcas de guerra visíveis nas fachadas.
Após estacionarmos num dos parques do centro da cidade, decidimos percorrer o centro em busca de um local para dormir. Saravejo é uma cidade marcada por três períodos distintos (Otomano, Austro-húngaro e Jugoslavo), sendo facilmente identificado cada um deles apenas percorrendo a avenida principal em direcção ao centro, que termina na Bascarcija (mercado), que é a zona que mantém a traça Otomana.
Hotel destruído no centro da cidade
Ao percorrer a avenida principal em direcção ao centro, encontrei muitas esplanadas e cafés abertos e algumas pessoas a passear pelas ruas. É uma sensação estranha passar por um local que conhecemos apenas das televisões e no qual vemos em cada canto imagens conhecidas, porém tão diferentes.
Ao passar numa dessas ruas um homem interpelou-nos, perguntando num inglês bastante perceptível se estávamos à procura de um sítio para ficar.


Ao início não reparei bem nele porque estava distraído a tirar fotos, mas depois observei-o atentamente. Trazia um fato bege bastante usado, e pelo aspecto diria que se tratava de um homem perto dos 60 anos e de aparência bastante humilde.
A Bascarcija
Em conversa, contou-nos que tinha cerca de 40 anos, o que me surpreendeu bastante porque aparentava ter muito mais idade. Perguntou-nos também a nossa nacionalidade, e como trazíamos Polacos na nossa comitiva, contou que tinha estado durante algum tempo a trabalhar na Polónia. Também nos contou que desde a guerra que estava desempregado. Como na altura já tinham passado 13 anos desde o início da guerra civil pensei para comigo como era possível alguém estar tanto tempo desempregado e conseguir subsistir.

Como ainda não tínhamos encontrado nenhum sítio para ficar decidimos ver a casa deste homem e pelo caminho fomos conversando. Dessa conversa retive na memória alguns dos diálogos que fomos tendo...
Num dos pontos da Bascarcija, disse-nos:

- Neste cruzamento, num raio de 300 metros há uma mesquita, uma sinagoga, uma igreja católica e outra ortodoxa. Durante 500 anos vivemos em paz, foi preciso vir o Milosevic para começarmos a lutar uns contra os outros!

Ainda durante o caminho para a sua casa, uma das nossas colegas de viagem perguntou o preço do alojamento, e ele disse-nos que era 15 euros a cada um. Ela queixou-se que era caro e que esperava que a casa tivesse boas condições, ao que ele respondeu que há 10 anos, durante a guerra, não havia um único edifício com os vidros intactos ou fornecimento de electricidade ou água na cidade. A mensagem foi clara: não esperem luxos por preços simbólicos. 

Ao passar por uma fonte numa praça, disse-nos que quem bebesse água dessa fonte ia regressar um dia a Sarajevo. Mais tarde vim a saber que o nome dessa praça era praça dos pombos. Mais adiante falarei dessa praça.
Hotel destruído perto da Avenida dos Snipers
Finalmente chegamos à casa do homem. Era uma casa bastante humilde, mas limpa. Honestamente para mim chegava e bastava, sabia a história daquele sítio e por aquele preço não esperava uma mansão. No entanto, algumas colegas estavam de pé atrás, uma preocupada pela segurança com medo que nos fizessem alguma coisa e outra com o preço que ele nos pediu. Alguns de nós como eu não nos importávamos de ficar, no entanto não íamos separar o grupo, pelo que decidimos não ficar.

Ao dizer-lhe que não íamos ficar reparei numa foto em particular. Uma foto antiga, desse homem com uma menina. Pelas feições pareceu-me ser filha dele, e lembrei-me de em conversa ele dizer que tinha uma namorada. Passou-me pelo pensamento que aquele homem podia ter perdido a família durante aqueles dias de tragédia, o que apesar de não ter certeza absoluta do que pensei fazia muito sentido pelo aspecto envelhecido e trágico daquela pobre alma.
Edifício do Parlamento
Enquanto lhe comunicávamos a decisão de que não íamos ficar, reparei na mudança de feições do pobre homem. No entanto o pior foi ao sair da sua casa, tendo-me virado para trás, e vi-o sentado numa cadeira a olhar para a porta pela qual nós passávamos. Nunca tinha visto ninguém com um olhar tão profundo de tristeza, desespero, derrota e resignação. Era como se tivessem aberto um enorme buraco negro na sua alma.
Ao ver tudo aquilo senti-me muito mal comigo próprio porque sabia que provavelmente aquele dinheiro ia garantir que ele subsistisse durante algum tempo. 

Do nosso grupo houve quem sentisse o mesmo:

M. – Pessoal, estou a sentir-me muito mal comigo próprio, temos de ajudar de alguma maneira este homem.
Hugo – Sim, concordo contigo M., também me sinto pessimamente.
M. – Vamos oferecer-lhe 20 euros e dizer-lhe que é como agradecimento pela visita guiada pelas ruas que fez.
A. – Sim, vamos.
Ao entrar novamente pela porta, apesar de notar que ainda estava atordoado ele tinha em parte recuperado o ânimo e estava ao telefone. Ao terminar de falar ao telefone, o M. começou a falar com ele.
M. – Sr, como foi tão atencioso connosco e nos mostrou o centro de Sarajevo, gostávamos de o recompensar pelo seu tempo e dar-lhe este dinheiro.

A reacção dele foi a seguinte:
 - Agradeço a oferta mas sou um cavalheiro e por isso não posso aceitar.

Antes de sair ainda nos mostrou um caderno com algumas declarações de pessoas que ficaram na casa dele, a dizer que era uma excelente pessoa e que gostaram muito de lá ter estado, o que fez com que me sentisse ainda mais triste.
Quando nos juntamos aos nossos colegas, uma delas perguntou-me se tínhamos ido regatear o preço. Ao ouvir isto quase explodi de raiva, mas em vez disso apenas me saiu uma frase de forma maquinal e fria: Não regateio com pessoas desesperadas!

Depois deste episódio fomos buscar a carrinha para procurar um dos endereços que anotei antes da viagem de possíveis locais para ficar. Disse-lhes que há 10 anos aquela cidade estava completamente destruída e que não esperassem encontrar as condições que encontrariam em casa. Era óbvio que estava a recriminar quem se tinha recusado a ficar lá, estava furioso com o que tinha acontecido, sobretudo com a falta de sensibilidade da nossa colega que me perguntou se tinha regressado para regatear.

Por fim, acabamos por descobrir um sítio para ficar com boas condições, e o ambiente começou a desanuviar. O local onde ficamos ficava sobranceiro à cidade, e de lá podíamos ver toda a cidade espraiada pelo vale do rio Miljacka. Nessa altura apercebi-me da enorme quantidade de sepulturas que rodeavam Sarajevo. Já tinha visto antes as fotos da cidade, mas não deixa de ser chocante visto ao vivo e a cores...
Aproveitámos para descansar um pouco até à hora de jantar, mas pensava para comigo que queria sair dali o mais rapidamente possível, o olhar desesperado daquele homem juntamente com a visão que tinha acabado de ver e o que sabia sobre a cidade estavam a deixar-me com um sentimento misto de tristeza, culpa e revolta.

Lembrei-me de uma foto que tinha visto há muitos anos durante a guerra, uma imagem a preto e branco, que revelava uma verdade indesmentível, fria e desprovida de sentimento, na qual aparecia uma parede esburacada por estilhaços e buracos de bala, com uma frase a spray: Welcome to hell.

Finalmente compreendia o real significado dessa frase, mas apenas uma pequena fracção, nada comparável com o quotidiano medonho desses dias de inferno, miséria e morte.