Como todos os miúdos da minha geração, também eu passei os verões (e vivi durante algum tempo) na “terra”, que no meu caso é uma aldeia algures entre a Serra dos Candeeiros e o Oceano Atlântico.
Dessa aldeia recordo muitas coisas que fizeram parte da minha infância, e que por boas ou más razões ficaram gravadas na memória, como quando a luz eléctrica pública foi instalada e finalmente a aldeia saiu da penumbra característica assim que o sol se punha, de ter caído e esfolado os joelhos e o queixo nos degraus que davam acesso à casa do meu avô, o que fez com que ele nos dias seguintes decidisse rapidamente acrescentar um degrau para que não voltasse a cair, dos longos passeios pelos campos cobertos de vinhas e árvores de fruto, de apanhar amoras no vizinho do lado, das vindimas em família quando nos juntávamos para apanhar as uvas e as pisávamos no lagar, das muitas idas à minha praia de infância, dos passeios de carro pela Serra dos Candeeiros e pelas redondezas, do primeiro dia de escola, dos inevitáveis piolhos, do primeiro grupo de amigos verdadeiros (e dos quais fui inevitavelmente perdendo o rasto até não sobrar nenhum) e de uma das minhas tias (chamemos-lhe a tia do pão com tulicreme).
De todas as lembranças de infância, a tia do pão com tulicreme é uma das mais agradáveis que tenho J
A tia do pão com tulicreme sempre me adorou. Porquê não sei, porque honestamente eu era uma peste em pequeno que nunca parava quieto e estava sempre a cair no chão de tão rápido que corria. Era o que se chamava ter mais vontade de correr do que força nas pernas, já que era um magricela, por isso andava grande parte desse tempo com os joelhos esfolados e cheios de mercúrio e pensos.
Volta e meia punha a família (e a terra) em alvoroço com as minhas tropelias. Ainda me lembro de quando decidi encher de pedras o depósito de combustível da mota de um dos meus tios, ou de quando decidi que havia de ir para casa a meio de um piquenique e pus os meus pais e os amigos à minha procura por toda a parte, enquanto eu estava tranquilamente a jogar jogos de tabuleiro em casa com a minha companhia de “fuga” (nunca acreditaram que chegasse a casa, mas como tinha dito a verdade livrei-me de levar uma surra, o mesmo já não se pode dizer da minha companhia desse dia…ainda hoje sinto remorsos por ter sido o responsável) ou ainda de quando perdi os óculos que detestava usar ao pé de uma fonte e tiveram de despejar a água dessa fonte para procurá-los lá dentro, e no fim não os encontraram. Felizmente por uns tempos não usei óculos, mas só até à próxima visita ao oftalmologista :S
Apesar de todas as minhas tropelias e de por vezes ficar de castigo, a minha tia tinha sempre um sorriso compreensivo e uma palavra amiga.
Depois de um dia de tropelias, lá ia eu tocar à campainha para ter com o meu primo, e ela recebia-me sempre com um sorriso, uma palavra amiga, e uma sandes de pão com tulicreme acompanhada de um refresco. Escusado será de dizer que volta e meia lá ia eu ver os meus tios e o meu primo…e o pão com tulicreme. Havia que juntar o útil ao agradável…
Muitas coisas mudaram desde essa altura…Deixei de ser magricela, de usar óculos tamanho xxl, de ter os joelhos esfolados e cobertos com mercurio e de fazer tropelias, entre outras coisas. A “terra” também mudou graças ao progresso, e embora os tempos tenham trazido coisas que antes não tinha, está cada vez mais vazia da alegria e do colorido que recordo na minha infância. Na velha escola primária onde aprendi a ler, escrever e contar as lições dadas tantas vezes pelos professores nas salas de aula terminaram, os quadros passaram a estar vazios de palavras, letras e números, as crianças já não brincam no recreio, e grande parte dos campos já não estão cultivados.
Hoje em dia a minha tia já não me dá pão com tulicreme (embora quisesse duvido que o encontrasse à venda) e já tem dificuldade em se deslocar por estar a avançar para o crepúsculo da vida.
No entanto continua a receber-me com o mesmo sorriso e o mesmo afecto de sempre. Felizmente ainda há coisas que nunca mudam.